Olhos do Hórus

Somos tantos e tão poucos...anjos, quase todos loucos pela vida e pelo pão. Somos santos desalmados, mortos-vivos, mal-amados...deuses sem religião. Mas, pra quem quer achar saída, temos os trilhos da vida...pra quem quer seguir adiante, temos o melhor caminho... Somos todos peregrinos, passageiros clandestinos das vãs asas do destino...

Tuesday, September 12, 2006

Um olhar sobre os arranha-céus
(
12/02/2004 )

Ok, depois de uma semana em outras paragens, uma pausa para respirar dentro do ninho... Quem me conhece um pouco deve (aliás talvez não deva) esperar que eu saia sem deixar rastros, suma e volte...acho que isso não é muito bom...mas com tanto tempo sobrando acaba faltando-me tempo pra fazer todas as coisas que me são necessárias pra ter a plena impressão (ou uma incompleta certeza) de que não estou perdendo meu tempo... Hoje passei um bom tempo da minha manhã sobre o terraço de um edifício de 22 andares, situado numa área de grandes prédios, mais ou menos próximos à orla de Salvador. Estava observando, registrando, estudando, enamorando o falcão peregrino que eu acompanho...ele vem do Norte da América do Norte e migra para Salvador todo fim de outubro, permanecendo aqui até abril. Desde 1997 acompanho esse falcão e é uma das experiências mais interessantes de se viver em meio à rotina do bélico cotidiano humano-urbano. Mas essa estória eu vou contar depois. O que quero dizer é que ao sentar nas telhas de amianto do terraço e me dar a liberdade de observar por longas horas aquele falcão peregrino, passei a vislumbrar também a liberdade que se pode ter ao olhar para a cidade lá embaixo...minúsculos carros cruzando a avenida, buzinas ecoando entre os arranha-céus, um céu azul singular, e, por trás da penumbra das casas mais altas um mar que nos põe a questionar porque aquela imensidão infinda nos é tão inalcançável...um tapete azul refletindo o céu, margeando nosso olhar até onde podemos ver. Ao olhar para a vida, para os rios de asfalto ali embaixo, num dado instante vem a sensação de ter conseguido sair de uma máquina estranguladora, de ter conseguido rasgar uma pele falsa que nos cobre ou que construímos para nos camuflar tal qual nossa vida antropofágica exige. Num instante a sensação de sentar sobre o mais alto ponto entre os arranha-céus, onde a ritmada, mas desafinada orquestra urbana é amortecida pelo vento e (entretanto, também, infelizmente) pelo ruído estridente da máquina do elevador nos remete a um estado que não nos é conhecido quando estamos dentro de um ônibus, no meio do engarrafamento, pagando a conta de luz e água, reclamando da demora na fila do banco ou do supermercado, andando e olhando para os lados para ter a garantia de que não está prestes a ser vítima de um assalto. Ao olhar para o vôo elegante e impecável do falcão peregrino e saber que estou olhando para um animal que atravessou mais de 12.000 km para chegar até aqui, pego-me sob um sentimento de privilégio...o via sempre em documentários da TV e admirava desde criança os vôos velozes e acrobáticos daquela ave linda a perseguir seu alimento e executar um balé aéreo que deixaria a mais elegante bailarina cabisbaixa. De repente não por acaso lá estava eu, lá estávamos nós, na mesma altura, entre os arranha-céus, aproveitando sob o mesmo ar um dia dos mais limpos e ensolarados que já passei nessa cidade...o peregrino era eu, arriscando peregrinar além do meu cotidiano, esquecendo por alguns instantes a conta do banco, a fila no supermercado, quanto custa o pão de cada dia. E antes que eu me despedisse, o falcão voou embora, porque também era preciso me lembrar que a magia da vida é não esperar o imprevisível...ainda que sentado sob o mesmo sol de todos os dias... Amanhã talvez eu volte...mas é bom não transformar em rotina, senão o templo da magia é destruído.

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