Olhos do Hórus

Somos tantos e tão poucos...anjos, quase todos loucos pela vida e pelo pão. Somos santos desalmados, mortos-vivos, mal-amados...deuses sem religião. Mas, pra quem quer achar saída, temos os trilhos da vida...pra quem quer seguir adiante, temos o melhor caminho... Somos todos peregrinos, passageiros clandestinos das vãs asas do destino...

Tuesday, September 12, 2006

Foto: Sávio Drummond

Outro textinho, escrito em 1999

Ateu

Achei um louva-a-deus no jardim de casa. Foi inconfundível reconhecê-lo. Foi inevitável tê-lo nas mãos. Talvez represente o louva-a-deus o meu maior fascínio no mundo dos insetos, meu elo com os futuros guardiães da Terra. Era um pequeno ser verde. Um corpo totalmente mimetizado, uma obra-prima tingida magicamente pelas mãos pacientes da evolução. Não, não era uma folha! Poderia ser, mas seus olhos brilhavam como orvalho no topo da pequena cabeça triangular, e cada olho, humanamente, parecia carregar consigo uma espécie de pupila, direcionada para o nada, parecendo perceber tudo.
Mas não por isso era um louva-a-deus. Era um louva-a-deus porque carregava nos seus braços uma prece, uma prece dissimulada, traiçoeiramente dissimulada. Uma prece fatal. Uma reza a deus nenhum, mas para si próprio, para garantir em frações de milésimos de segundos a sua existência. Suas mãos não traziam flores, mas espinhos, afiados e moldados, mais uma vez pelas mãos humildes da evolução. Suas asas traziam falsos olhos. Olhos amavelmente inofensivos. Inocentemente malignos. Mas ainda era um louva-a-deus. O mito não morreria tão cedo assim. E por ser tanto, carregava consigo um estigma. Que tão imperdoável pecado cometera, para suplicar por tanto perdão? Em que tão insignificante coração repousaria tanta fé ?
Pensando na sua verdade por trás daquela prece, resolvi dar-lhe um alimento. Um gafanhoto. Um infeliz gafanhoto. Tão infeliz que não seria jamais um louva-a-deus...
A guerra das necessidades ganhou seu espaço naquele instante. E num momento quase imperceptível o louvor-ateu justificou suas causas. E Deus, de onde estivesse, perdoou aquele instante. Talvez enxergasse naqueles pequenos olhos tamanha inocência naquele ato. Talvez enxergasse naquele ser a sua imagem e perfeição, seu melhor ator no teatro da vida. Sem máscaras, sem drama, sem enredo algum.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home